segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O Retorno de Palhares

Nada como terminar a manhã de Segunda-feira com o Palhares.

Sim, o Palhares! O mesmo que me fez perder uma manhã inteira no Armazém de "X", o qual ele "supervisiona".

Meu mecânico trabalho rotineiro é interrompido quando o boy traz meu lanche, acho que seu nome é "Filho" ou "Junior"... "Neto", “Segundo” talvez. Eu chamo ele de "Valeu campeããão" para disfarçar que ele está ha quase um ano na empresa e eu nunca me dei ao trabalho de aprender seu nome.

Parece cruel, mas na esteira da ala administrativa da mina onde trabalho, somos peças do maquinário com funções variando de grau à nossa faixa salarial. Tem aqueles que só possuem apelidos como "Valeu campeããão", tem aqueles ligeiramente acima deles, como eu, que chegam a ter seu primeiro nome... "Ivan" no meu caso, e tem o Palhares. Os quase superiores. Aqueles por quem tratamos pelo sobrenome.

Um dia eu chego a esse status... Só será estranho os estivadores e o "Valeu campeããão" me chamando de "Paixão".

Só para completar, depois volto ao Palhares: Tem os Gerentes, aqueles que atendem por "Doutor" e mais um dos nomes - pode ser o primeiro ou o sobrenome... Não decifrei ainda o código - e porfim o dono da Mina, que atende por "Doutor" e seu nome completo.

Tipo na oração explicativa "Ivan, o Palhares é interino de Doutor Ataliba enquanto ele viaja com Doutor Augusto Aguiar" dá para ver os "macaquinhos" na manjada escala evolutiva humana. 

Okey, Palhares agora.

Se vocês se lembram, ele é o supervisor do armazém de "x"... Na verdade do Depósito 03 que usam peças de certa metragem - dentre as quais estava os 525 "x". Eu, recebo e repasso os produtos todos que chegam. Somos departamentos diferentes, com um único ponto de intersecção, que é quando os produtos que eu recebo são destinados à armazenagem no Depósito 03.

Então, não posso descartar o fato de Palhares estar no meu departamento ser por motivo de trabalho. Então ele se aproxima. Logo depois de eu receber meu sanduíche e meu guaraná do "Valeu campeããão".

- Ô Ivan... - aborda, após tossir. - Posso usar rapidinho seu ramal? É interno!

Traduzindo aos leigos: "interno" quer dizer que é para ligar de ramal a ramal, ou seja, não usar a linha telefônica para fora, que é a que cobra tarifa e se for particular desconta de meu mínguo salário. 

 Apesar dele ser um "sobrenome", ele não é meu superior funcional. Não era de meu departamento, oras! Mas não vi na hora problema em poupá-lo de caminhar até o longínquo armazém de "x" para verificar algo. "Claro!" - falo cordialmente, estendendo o fone do aparelho e as teclas tão distante quanto o enrolado cabo permitia.

Ainda tinha coisas a fazer antes de ir ao meu almoço, então continuo à máquina, trabalhando, enquanto ele discava e esperava o cara do outro lado atender. Mas nisso não tem como ignorar aquele senhor de 50 anos debruçado sobre meu ombro por causa do fio curto. E o gênio do outro lado não atendia prontamente. Eu poderia ir para baixo de minha mesa conseguir mais cabo para ele, ou ceder meu assento.

- Quer se sentar um pouco, Palhares? - pergunto. Retoricamente, já que o desconforto era visível. Ele agradece com um sorriso e um gesto de mão, e mexe a boca. Como se dissesse algo, mas não queria que o interlocutor ouvisse. Supus que já estavam atendendo.

Não prestei muita atenção até por questão de educação. Mas estar nas cercanias me permitiu ouvir palavras soltas e montar a história na mente. Ele mencionou um outro "sobrenome" e depois as palavras nessa ordem mas interligadas por outras: "férias", "rapaz, esqueci, acredita?" e "caixa de correio". Também tosse um pouco. Reparo que ele meio que tossiu algumas vezes no dia de hoje.

- O Ivan... - fala ele tampando o fone com a mão. - Desboqueia aí seu terminal para eu pegar um arquivo!

Eu reparo que não foi um pedido como o de usar meu Ramal. Palhares deve saber que eu não sou um "sobrenome" e que gente como eu ter um ramal é um privilégio, e Doutor Augusto Aguiar deixava isso bem claro nas reuniões bisemenstrais com toda a força de trabalho.

Mas eu sou cordial e consigo incluir mais aquele favor no contexto original. Afinal, era coisa de trabalho. Dava para relevar a estranheza até então... Pressiono as teclas secretas (ao menos ele não ficou encarando quando eu digitava o nome da minha filha, que é minha senha). 

Ele realmente foi direto no ícone da caixa de correio interno, que pediu prontamente a identificação. Ele desligou o ramal, e escreveu no nome do usuário: "ataliba". Esfrego os olhos e constato que quem estava na minha cadeira era o Palhares, não o Doutor Ataliba.

Ele pega o telefone de novo. Desta vez não pedindo autorização. Numa fração de segundos eu novamente enquadro no pedido anterior, embora desta vez estava sendo completamente ignorado.

E desta vez ele clica "jogo da velha". O sinal para ligação externa.

- O Doutor Ataliba não me passou o relatório antes de sair de férias. - fala ele, como se percebesse que sua indiscrição estava indo um tanto longe. Tosse mais uma vez e olha por alto minha mesa. 

O sistema de correio interno não precisa do "doutor", mas nós, meros nomes e os orgulhosos Sobrenomes da empresa, precisavam. Ele assenhorou-se da autoridade de um gerente - este chefe de nós dois em comum - para conseguir de mim um pouco mais de tolerância. Por isso, eu mantenho-me em silêncio.

- Bom dia... O quarto do Doutor Ataliba, por favor? - continua Palhares no ramal. - Tudo bem... eu espero. 

 Não... EU estava esperando. Era uma ligação externa no MEU ramal, que outro sobrenome iria averiguar, e eu precisaria comprovar que era assunto de trabalho. Ótimo que era para o Doutor Ataliba, mas como foi que um "Ivan" conseguiu o número? Lembrem que ele estava de férias com o maldito dono da mina!

 Enfim, o nosso gerente esquivo atendeu e trocou informações. "Como é que tá aí em Aspen" e coisa e tal. "Chegaram os "x". 525 unidades. Libera o pagamento". E enfim:

- Me passa aí a sua senha que eu pego no seu correio! - fala nosso herói.

Eu queria sentar... Mas o Palhares estava na minha cadeira. 

Doutor Augusto Aguiar deixou bem claro a proibição de usarem as senhas uns dos outros, e alertou que os terminais eram constantemente monitorados para identificar quem descumprir a regra. Palhares estava no meu terminal, desbloqueado com a minha senha, entrando na conta de um gerente! Claro que na manhã seguinte meu supervisor iria me chamar na salinha.

Recordo-me que um dos expoentes dessa libertinagem de senhas era justamente o Armazém 03. Doutor Augusto Aguiar nunca apontou nomes diretamente, mas imagino que se não fosse o cabeça, Palhares era pelo menos um de seus expoentes.

E agora eu. Sem sequer ter a tênue proteção de ser um "sobrenome", "Ivan" estava incluído nos registros. 

No nervosismo e na confusão mental, o fato do Palhares estar na minha cadeira quando eu precisava tanto sentar me pareceu igualmente grave. Olho atônito quando ele digita os seis dígitos, abre o correio interno, procura dentre os múltiplos e-mails confidenciais do Doutor Ataliba um com o primeiro termo "relatório" no Subject.

Eu já me senti um espião industrial por ter lido o nome "relatório"!

Eu viro o olhar e acompanho só com a visão periférica. Ele repassa para outros dois e-mail... E enfim fecha. Em algum momento enquanto fazia isso, ele acalmou sua tosse com o guaraná que "Valeu campeããão" trouxe para meu almoço. Não consegui precisar quando.

Enfim, ele agradece (longamente) Doutor Ataliba, desliga o telefone, manda desligar meu computador - sendo que eu ainda tinha coisas para fazer antes do almoço (que tinha começado ha dois minutos) e me agradece o favor.

Claro, no vão de saída, ele vira-se para mim e pergunta:

- Quem é "Suzana"?

- M-minha filha.

- Ah! - fala enfim. E some pelo resto do dia.

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